LGBTQIA+

A morte assombra a gente o tempo todo, diz primeira deputada travesti de Pernambuco, Robeyoncé Lima

A deputada estadual Robeyoncé Lima foi a primeira pessoa pública a chamar atenção para o caso de Roberta, a mulher trans queimada viva no Recife esta semana. Ela visitou a vítima no hospital e reflete sobre a situação da comunidade LGBTQIA+ no Brasil

Gabriel Dias
Gabriel Dias
Publicado em 26/06/2021 às 14:13 | Atualizado em 27/01/2023 às 11:57
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Primeira deputada travesti da Assembleia Legislativa de Pernambuco, Robeyoncé Lima (PSOL) foi a primeira pessoa pública a chamar atenção para o caso da mulher transexual queimada viva esta semana no centro do Recife. Com 40% do corpo queimado e ferimentos de até terceiro grau, Roberta, de 32 anos, sobreviveu, mas não sabe até quando. “A expectativa de vida de uma pessoa trans no Brasil é de 35 anos”, lembra Robeyoncé - eleita pela candidatura coletiva “Juntas”.

No ano passado, 237 LGBT+ morreram no Brasil, de acordo com dados do Observatório de Mortes Violentas de LGBTI+ no Brasil, produzido pelo Grupo Gay da Bahia (GGB). Deste total, 94,5% correspondem a assassinatos. No topo da lista das vítimas, estão as travestis e mulheres trans, representando 70% das mortes. Há 12 anos, consecutivamente, o Brasil é o país onde mais pessoas trans são mortas em todo o mundo.

Nesta entrevista, a parlamentar fala sobre as violências sofridas por Roberta e tantos outros transexuais, reflete sobre o preconceito que continua assolando o Brasil, cobra que o Legislativo aprove leis para a comunidade LGBTQIA+ e faz um desenho de como imagina que o país estará daqui a 10 anos.

CASO ROBERTA

Como a senhora ficou sabendo do caso da Roberta?

Deputada Robeyoncé Lima: Eu fiquei sabendo informalmente pelas redes, com outras amigas trans. Ontem [sexta-feira], fui lá no hospital e consegui autorização para entrar. Ela estava consciente, mas as queimaduras foram muito graves, inclusive no pescoço e na cabeça também.

Roberta teve 40% do corpo queimado. Como ela estava quando a senhora chegou ao hospital?

Robeyoncé: Toda enfaixada da cintura para cima, com dificuldade até de se sentar para fazer a refeição. Ela teve queimaduras de terceiro grau, então já dá para ter uma noção do que ela sentiu. Eu imagino que foi muita dor. Em alguns momentos da nossa conversa, o olho dela lacrimejou bastante.

O que ela falou para a senhora?

Robeyoncé: Ela é uma pessoa em situação de rua e mora naquela região [nos arredores do Cais de Santa Rita]. O que ela me disse é que o cara chegou, jogou alguma substância inflamável e colocou fogo.

E por quê?

Robeyoncé: Ela me disse que foi por discriminação. Transfobia.

A senhora pode explicar aos nossos leitores o que é transfobia, por favor?

Robeyoncé: A transfobia é o crime motivado em decorrência da identidade de gênero [da vítima]. É um crime de ódio, no qual, o fator motivador é o preconceito do agente contra a vítima. Há requintes de aversão porque a pessoa é trans.

Ela já havia sido agredida em outro momento?

Robeyoncé: Ela não entrou neste detalhe comigo, mas ela já vive em uma situação de vulnerabilidade. Pelo contexto, dá para se imaginar que a violência era constante. Imagine uma pessoa que mora na rua, imagina a precariedade, a exposição em que ela está.

Mulher trans, negra, vivendo na rua. Quantas camadas de agressões Roberta sofre, não?

Robeyoncé: São as várias faces da violência. Uma coisa está concatenada com a outra. Não faz muito sentido abordar as questões de gênero e sexualidade, sem refletir sobre as concatenação de outros fatores sociológicos que estão relacionados com a questão de gênero. Não tem como estudar diversidade de gênero, sem a questão de raça, de classe, por ela morar na rua.

Sem falar na expectativa de vida. Felizmente, ela sobreviveu a esse ataque, mas a expectativa de vida dela é baixíssima, sim?

Robeyoncé: A expectativa de vida da pessoa trans é metade da expectativa de pessoas cis. A expectativa para os trans é de 35 anos de idade ou menos. Estamos sendo mortas, exterminadas. O exemplo de Roberta foi um dos que chegou até nós, mas há muitos casos que as pessoas não ficam sabendo. O medo da morte é constante para a gente. [É possível fazer uma comparação com a pandemia], no caso das pessoas cis, o medo da morte pode ser uma novidade com o coronavírus, mas para a gente não é. A morte assombra a gente o tempo todo, desde muito antes da pandemia que também está matando milhares de pessoas.

PRECONCEITO

Nos comentários das reportagens sobre o caso da Roberta publicadas nas redes sociais, antes de se solidarizar com a dor da vítima, perguntar sobre o estado de saúde ou criticar a violência sofrida por ela, muita gente preferiu fazer questionamentos sobre se ela seria mulher ou não. Na avaliação da senhora, o que o caso da Roberta, em pleno mês de junho, revela sobre o atual momento da comunidade LGBTQIA+ no Brasil?

Robeyoncé: Tanto a violência, quanto os comentários, mostram a banalização da violência contra os nossos corpos. As pessoas não ficam chocadas. A gente vive no país que mais mata pessoas trans no mundo. Alguns casos não são nem notificados. Neste caso, a polícia tomou as medidas, apreendeu o menor, mas existe uma cifra oculta muito grande de casos que nem chegam ao conhecimento das pessoas. Isso aconteceu no mês do orgulho LGBTQIA+. O quanto isso é contraditório e nos deixa perplexos? Se isso não deixa uma pessoa perplexa, não sei que nível de ser humano é esse.

E por que algumas pessoas não ficam perplexas?

Robeyoncé: Eu acredito que é muito de uma sociedade marcada pelo preconceito sobre identidade de gênero. Há um avanço de conservadorismo muito grande, o que atrapalha o respeito à identidade de gênero e à diversidade. São resquícios. Não é uma coisa de agora, tendo em vista que o Brasil ocupa o topo do ranking de agressões há mais de 10 anos, mas, de um tempo para cá, isso tem se intensificado.

No ranking de agressões contra minorias, em qual posição a comunidade LGBTQIA+ está?

Robeyoncé: Eu acho que está em extrema vulnerabilidade, justamente por causa da dificuldade no reconhecimento e na garantia dos nossos direitos. A gente tem um sistema de estado, que não garante a cidadania plena. A gente tem uma cidadania que é judicializada, não legislada. Praticamente todas as conquistas que tivemos foi por causa do Supremo Tribunal Federal, como a união estável e a retificação de nome [em documentos]. Outro exemplo é a doação de sangue, que era proibida ser feita por uma pessoa LGBTQIA+. O Supremo considerou, inclusive, que isso era inconstitucional. O crime de homofobia, também foi o STF quem enquadrou [dentro do crime de racismo].

Por que isso não é o ideal?

Robeyoncé: É que são entendimentos que podem mudar. Até o momento, o que temos são entendimentos. Não há a mesma segurança jurídica que uma lei. O Legislativo precisa legislar essas matérias para que haja uma segurança maior. Por enquanto, temos uma cidadania judicializada, que pode mudar.

Os números de violência contra a comunidade LGBTQIA+ no Brasil são dantescos. O que fazer para mudar essa situação?

Robeyoncé: Eu acho que cobrar ações efetivas em relação a políticas públicas, Além disso, no caso da população de rua, é preciso atuar no preconceito que acontece dentro das famílias.

A homofobia intrafamiliar ainda é muito grande no Brasil. É isso?

Robeyoncé: Exato. A homofobia intrafamiliar é o que faz a família expulsar as pessoas LGBTQIA+ de suas casas, e elas acabam indo morar na rua. Então, como está a política pública em relação a essa questão?

O processo civilizatório é longo, mas deveria começar na escola?

Robeyoncé: Também. As pessoas deveriam, desde cedo, entender os valores, o que é identidade de gênero. Isso não é visto no Ensino Fundamental nem no Ensino Médio e, muitas vezes, as pessoas olham para a gente como se fossemos um alienígena. É necessário que a gente normalize essas discussões na sala de aula e na família, para que não tenhamos condutas discriminatórias na sociedade.

POLÍTICA

Seu trabalho como primeira deputada travesti na Alepe está difícil?

Robeyoncé: Como você deve imaginar, a assembleia também reproduz certo desrespeito em relação a essas temáticas. A gente percebe a dificuldade na hora de aprovar um projeto de lei relacionado à temática. Sempre tem 11 ou 12 dos 49 deputados que votam contra. Além disso, como ocorre em qualquer lugar, em termo de descriminalização, os parlamentos reproduzem o que a gente vê na sociedade de maneira geral. Agora, o ambiente formal da Assembleia Legislativa leva a uma descriminação velada. É algo sutil, na forma de olhar, o jeito como fala com você ou como não fala. A sutileza dá reflexo a um certo incômodo que muitas pessoas sentem porque não gostariam de me ver ali.

Nesse contexto todo, como será o Brasil daqui 10 anos para os LGBTQIA+? Não o que a senhora quer que seja, mas como a senhora acredita que será?

Robeyoncé: Eu imagino um cenário bem favorável, que a gente consiga alguns avanços em busca da cidadania plena. Tivemos, nas eleições de 2020, um bom avanço. Elegemos 30 candidaturas trans nas câmaras municipais de várias cidades, mas ainda há um longo caminho. Acredito que 10 anos não vão ser suficientes para tudo, mas estaremos em espaços estratégicos para que haja uma modificação na mudança plena, não só em assuntos como o reconhecimento da união estável, por exemplo, mas no direito à educação, saúde, renda, enfim, no direito à viver que até isso está sendo negado.