Prevista para integrar o calendário do festival de artes Cena Cumplicidades, com na início semana que vem na Universidade Federal de Pernambuco e em vários teatros do Recife, a peça argentina Puto, traduzida livremente para o português como Veado, não vai mais compor a programação, que tem como temática “a defesa das minorias e da arte”. Monólogo interpretado pelo ator argentino Ezequiel Barrios, 36 anos, com uma carreira consolidada em seu país, o espetáculo aborda dilemas da homossexualidade. Em boa parte das cenas, o artista atua nu. Com o acirramento de ânimos e o registro de ataques por motivações morais e políticas no segundo turno das eleições presidenciais no Brasil, os organizadores acharam arriscado trazer o espetáculo para o Recife.
Os produtores temem ataques de cunho moralista motivados por convicções políticas. “Não tínhamos como garantir a integridade física deste ator estrangeiro. A peça estava pensada para participar do festival ainda no primeiro turno das eleições. Agora, a situação se mostra inviável”, diz Arnaldo Siqueira, da Associação de Artistas Integrados, um dos organizadores do festival. “Pelo atual contexto político do nosso país, com manifestações públicas de violência e embate ideológico, não nos sentimos confortáveis em trazer um artista estrangeiro que poderia estar em uma situação vulnerável”, complementa uma nota oficial do Cena CumpliCidades.
A peça foi desconvidada antes mesmo de ser integrada ao festival. Em e-mail ao artista argentino, o curador alegou os riscos diante dos ataques verificados contra artistas como o capoeirista Moa do Kateretêe, assassinado na Bahia, numa discussão política. No e-mail, ele aponta para os riscos “que apontam a vitória esmagadora da extrema-direita”, seguida “"por ataques a artistas e militantes (com agressões e a morte a punhaladas de um colega capoeirista)”.
Com oito anos de existência e mais de 250 espetáculos do mundo apresentado em suas edições, o festival segue com o resto da programação. Entre os dias 23 e 27 de outubro, estão programadas 33 atrações. Em nota oficial, os organizadores reforçam que o festival segue com a premissa de manter as discussões estéticas sobre diversidades e minorias.
Nota oficial
O Cena CumpliCidades está na sua oitava edição em 2018 e é um festival de resistência. Já se apresentaram nos palcos das cidades por onde passou mais de 250 espetáculos de várias partes do mundo, sempre com temas a favor da arte, da liberdade de expressão e da democracia plural e resistente da dança como expressão artística ímpar. Entre os temas que abordamos estão danças ibero-americanas, danças francesas, pornografia na dança, ritmos africanos, valorização de espetáculos regionais, equidade de gênero e diversidade sexual, etc. O espetáculo do artista Ezequiel Barrios, “Puto”, foi cogitado pela curadoria do festival por estar dentro do perfil que sempre tivemos orgulho de promover.
Alguns exemplos de espetáculos que trazem temáticas semelhantes e que estiveram no nosso palco: Gritaram-me Vogue, Corpornô, Samba do Criolo Doido, Proibido Elefantes, Good Boys, Transobjeto e os argentinos Moral Amoral e Inmoral e La Wagner. O bailarino argentino Ariel Davila, que esteve no Cena CumpliCidades do 2016, inclusive, fez um depoimento nesta quarta, dia 17/10, na sua rede social falando e elogiando o festival, que tem perfil voltado para as artes da cena: dança, performance, música. Importante ressaltar que a temática da nossa edição 2018 continua a mesma: a defesa das minorias e da arte. Não houve nenhum cancelamento da programação oficial. O espetáculo Puto não chegou a ser confirmado na lista nal da seleção 2018. Alguns trabalhos, inclusive este citado, acabaram não sendo selecionados pelo cuidado que o festival tem de não expor artistas a situações inesperadas. O Cena prioriza sempre a segurança e bem-estar dos artistas que passam pelos nossos palcos. Pelo atual contexto político do nosso país, com manifestações públicas de violência e embate ideológico, não nos sentimos confortáveis em trazer um artista estrangeiro que poderia estar em uma situação vulnerável. Mas mantivemos na nossa programação a mesma temática em espetáculos de artistas brasileiros, que sentimos que estão completamente a par da situação do país e se comprometem com a resistência. Mais uma coisa importante a ser dita: os espetáculos estão sendo programados dentro de uma universidade, onde não poderíamos promover segurança extra para estar dentro dos padrões e normas do espaço público de educação.
"Radicalizou-se um clima de intolerância, se radicalizou um clima de perseguição, infelizmente. E a gente não teve como definir na programação essas obras em função de a gente não conseguir se comprometer com a segurança", diz Siqueira